Romance A família Canuto

Romance A família Canuto
Romance A família Canuto e a Luta camponesa na Amazônia. Prêmio Jabuti de Literatura.

sábado, 6 de janeiro de 2024

Inteligência artificial no contexto da cultura cigana

                                          Inteligência artificial no contexto da cultura cigana


Carlos Cartaxo


Na minha infância existia uma informação que costuma apavorar a todos quando era veiculada: os ciganos já estão vindo próximos daqui! Essa era a notícia que me apavorava porque tinha uma carga subliminar de perigo. Os adultos trancavam e escondiam seus pertences de valores. As famílias prendiam suas filhas jovens. As crianças eram protegidas para não serem sequestradas. As notícias chegavam com uma carga de informação ameaçadora. Em contrapartida, a polícia nada fazia mesmo sabendo do perigo iminente que se aproximava. Essa informação ficou gravada no inconsciente coletivo com o pior estigma que as comunidades ciganas poderiam representar. Pela lógica cultural difundida, cigano era sinônimo de ladrão! Era como se uma trupe nômade de ladrões perambulavam livremente pelo mundo afora.

Cresci sem entender o porquê dessa lógica acusatória não ser aplicada aos maus empresários, médicos, advogados, enfim a todos os segmentos profissionais que deixavam de lado a ética e agiam com o fim de enriquecer de forma ilícita. A questão não é fazer paralelo de maus segmentos sociais; mas, fazer uma análise comparativa para se perceber que por trás de todo procedimento inescrupuloso há um arcabouço falho quanto a ética, os valores e o respeito. Isso vale para os profissionais liberais, públicos e para os sujeitos  étnicos também.

Cresci com essa débil informação. Só com os estudos acadêmicos é que despertei para as composições culturais e seus valores étnicos, o que corresponde a ter cautela, muita cautela quanto se afirma de forma leviana que o povo é preguiçoso, larápio, inculto etc. Este artigo segue a lógica da pesquisa de Grassi porque ele argumenta na sua dissertação que 

serão empregados conceitos como hibridismo, identidade nacional e eurocentrismo que juntos formarão os pilares de sustentação desta pesquisa e que também contribuirão efetivamente para transparecer porque ainda hoje existe a perpetuação de uma linguagem preconceituosa e difamatória enraizada no imaginário dos não ciganos em oposição aos ciganos (GIASSI, p.8, 2014). 


Após o resgate da minha memória cultural, me deparo com a realidade da IA - Inteligência Artificial fazendo parte do nosso cotidiano demonstrando que pode tratar as culturas tradicionais como o da etnia cigana, negra e indígena, de diversas forma com abordagens surpreendentes, de maneira que a análise crítica se faz necessária para se coibir desvios e abusos preconceituosos e xenófobos.   

Os recursos técnicos da inteligência Artificial que conhecemos hoje, teve seu pontapé inicial, em 1956, quando da realização do evento O Projeto de Pesquisa de Verão de Dartmouth sobre Inteligência Artificial que abordou essa área do conhecimento como sendo um novo campo de estudo (DARTMOUTH, 2024). Quase sete décadas se passaram e o quadro, na atualidade, se configura com um avanço tecnológico surpreendente nesse campo de estudo; todavia, o tratamento dado às diferenças econômicas, sociais e culturais continuam a estender-se com intolerância e desrespeito humano. Então, eis a questão: qual a orientação social, política e científica a IA tomará?


Ciganos Calon, Sousa, Paraíba, Brasil. 


Migração

Nunca é demais lembrar que a palavra etnia deriva do grego ethnis, cujo significado é povo; por conseguinte se refere a um grupo de pessoas cuja identidade é constituída por características que têm em comum a história, cultura, língua, valores éticos e morais, gastronomia, elementos estéticos, atividades lúdicas e similitudes físicas. Com essa definição convergimos o artigo para a etnia cigana. 

A migração é um fluxo de seres vivos que se deslocam com o fim de encontrar melhores condições de sobrevivência. A migração faz parte da vida humana desde os primórdios da civilização. Estudos demonstram que os ciganos migraram da Ásia para Europa e, posteriormente, para as Américas. Esse fluxo foi resultado de séculos de circulação nômade que construiu laços e traços que resultaram no desenho etnico que nos chegou da cultura cigana. Como completo do livro de Melo Morais Filho, O editor, Eduardo Rodrigues Vianna, esclarece, em pé de página, que 

Há três grandes ramos do povo cigano presentes no Brasil: rom, proveniente do leste e do norte da Europa; sinti, cuja origem encontra-se principalmente na Europa Central; e calom, originário de Espanha e Portugal. Nesta edição optamos pelo termo calom, terminado em m, dado pelos dicionários da língua portuguesa que utilizamos para trabalhar, em lugar de calon, tal como consta da grafia do dialeto calom, bastante utilizado por estudiosos da temática cigana (FILHO, p. 9, 2018). 

Melo Morais Filho esclarece a pluralidade das denominações ciganas no mundo quando afirmar que 


Os ciganos, hordas sem culto, sem asilo e sem lar, rodeando todas as civilizações mas sempre fora delas, chamados na Inglaterra gypsies, na Alemanha zigueuners, na Espanha gitanos, na Itália zigari, na Turquia çingenes, na França bohemiens, e no Brasil, por eles mesmos, calons, 1 têm em sua poesia alguma coisa que deslumbra como as labaredas refletidas da trípode das sibilas,2 e de profundamente impressionável como uma dor eterna (MORAIS FILHO, p. 9, 2018).


O editor, Eduardo Rodrigues Vianna, também afirma que 


Na atualidade, a noção de que o povo cigano tem uma origem comum na Índia parece ser a mais aceita. Em 1971 celebrou-se na Inglaterra o primeiro Congresso Mundial Romani; na ocasião adotou-se a bandeira com a tarja superior azul, representando o céu, a tarja inferior, verde, representando a terra, e a roda vermelha com 24 raios, representando a Índia (MORAIS FILHO, p. 10, 2018).


A preocupação quanto ao uso politicamente incorreto da IA no que concerne ao tema em debate, no caso migração, faz todo sentido porque têm antecedentes que nos alertam sobre as possibilidade indevidas, de agressão a etnia cigana, que merecem uma abordagem crítica. Mas uma vez recorro ao editor, Eduardo Rodrigues Vianna, que afirma:

 

Mais tarde, no séc. XX, o estigma do cigano como um invasor, e como um ente nocivo à nacionalidade, apareceria na Alemanha governada pelos nazistas. Na opinião de Hitler, os ciganos eram uma praga racial, a ser erradicada por meio da esterilização ou do extermínio. Produziu-se um holocausto cigano sob o regime nazista, com 600 mil mortos (MORAIS FILHO, p. 21, 2018).


Se as células neonazistas e o fascismo estão vivos e atuantes, hoje, de forma preconceituosa, xenófoba e violenta, conclui-se que é real a prudência científica quanto ao estudo das possibilidades desse instrumento tecnológico, presente nas nossas vidas, canalizar o ódio no seio da sociedade.



Marcilânia Alcântara, cigana Calon, Sousa, Paraiba, Brasil


A estética cigana


Os traços estéticos da cultura cigana é vista de norte a sul, de leste a oeste, através do seu falar, vestir, dançar, dos valores morais, gastronômicos e até comerciais. É fato que a identidade cigana, por si só, traduz o belo desse povo; concordância que tem respaldo na fala de Pina “ a unidade e concordância da essência humana historicamente concreta consigo mesma e com  natureza é a base objetiva do belo”. (PNA, p. 94, 2018). Diferente do conceito platônico de que o belo deve ser considerado quando causa uma catarse em quem o aprecia; o belo da cultura cigana, assim como de outras etnias, como a indígena, por exemplo,  o belo tem um peso semiótico para quem a conduz. Suas cores, seus figurinos, seus ritmos etc, são os signos que definem sua identidade. Então, a forma de se representar expressa na sua imagem exterior que, concomitantemente, traduz o seu conteúdo interior.

As cores fortes são marcantes na identidade cigana. Isso não é o suficiente para traçar um tratado sobre o belo na cultura cigana e, consequentemente, determinar parâmetros para esse conceito. Não obstante, há representação suficiente para dizer, à luz da estética, que há o belo na identidade cigana. Essa etnia tem na forma do vestir, por exemplo, uma imagem simbólica do que lhe é agradável porque traduz sua identidade. Como diz Álvaro Pina, no livro “O belo como categoria estética”, quanto à forma de representação simbólica cigana, “não agrada apenas o objeto, mas também a sua existência” (PINA, p.19, 1982).

O prazer de ser como, de fato, se é, determina a forma e o conteúdo, de fácil identificação, da concepção semiótica da cultura cigana. Essa representação histórica não surgiu a partir de um conceito, mas, de uma história milenar transmitida de gerações para gerações, sem um fator determinante, que não seja sua identidade cultural.


Grupo Artístico Cigano Calon, Sousa, Paraiba, Brasil


A literatura cigana


O estigma da forma de ser da etnia cigana sofre com interpretações preconceituosas que não condizem com a realidade desse povo. A literatura cigana é vasta; podemos citar, por exemplo, Cancioneiro dos Ciganos de Melo Morais Filho. A fortaleza da cultura dessa etnia é também representada através da literatura. A dissertação de mestrado Olhares Eurocêntricos: a figura do cigano nas narrativas da série O povo cigano no Brasil e das obras Memórias de um Sargento de Milícias e Tocaia Grande: a face obscura de autoria de Reginaldo Paulo Giassi, defendida no Curso de Mestrado em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina, é um referencial de estudo acadêmico sobre o tema em pauta.

Na sua obra, Melo Morais Filho aborda as crenças nas coisas naturais, superstições, a forte relação com o amor e a dramaticidade da literatura cigana. Afirma que “A poesia amorosa, de concepções delicadas e ardentes, engrinaldada de rosas e jacintos, é para o calom um meteoro que luz a furto e desaparece rápido” (MORAIS FILHO, p.15, 2018).


O dia em que não sofro 

Eu penso que não sou eu; 

Que o meu eu se transformou 

Num outro que não é meu.

A morte, por ser desgraça, 

Não deixa de ser ventura, 

Pois corta pelas raízes 

Males que a vida não cura.


“Os versos seguintes, comovedores como o vagido dos enjeitados que levam à roda, é o soluçar pungente e agradecido do órfão, que caminha abraçado ao joelho da caridade” (MORAIS FILHO, p.15, 2018):

 

Perdi minha mãe carinhosa 

Que tanto me acarinhava! 

Que nos meus males aflita 

Chorava quando eu chorava! 


Para carpir sua falta 

A minha’alma prantos tem! 

Felícia, chora comigo, 

Era tua mãe também!

 

Quando perdi minha mãe 

Eu julguei de sucumbir, 

Agradeço a meu irmão, 

Deu-me forças pra sentir.

 

Dentre os poemas do “Cancioneiro dos Ciganos”, livro de Melo Morais Filho publicamos, do capítulo 4, Espécimes do Dialeto Calom, fragmentos que demonstram a arte da poesia desse povo, páginas 111 e 112.


De um filho ao pai 

No dialeto calom: 

Ó bato, tu merinhaste, 

Tão chinurrão eu fiquei. 

Manguella ao Duvel por mença 

Que por tuça eu manguinhei. 

Tradução livre: 

Ó meu pai, tu já morreste, 

Tão pequenino eu fiquei. 

Suplica por mim a Deus, 

Que eu por ti já supliquei.

No dialeto calom: 

Quem se cismar nachadon 

Não requerde cime dar 

Que o ron quidon requerdando 

Dinhão dabans a mardar.


Tradução livre: 

Quem conhecer-se infeliz 

Não fale, esteja calado; 

Que o infeliz quando fala 

Quase sempre é castigado. 

Tradução literal: 

Quem se conhecer desgraçado 

Não fale, tenha medo 

Que ao homem desgraçado falando 

Dão pancadas de matar.  


Epílogo

Há conclusão? Os estudos sobre Inteligência Artificial no contexto da cultura cigana continuará, assim como com outras etnias, foco da nossa pesquisa, porque é de responsabilidade da universidade brasileira pensar a sociedade como um ente coletivo que deve evoluir de forma progressiva respeitando todos os passos justos e igualitários da dignidade e das diferenças humanas. Portanto, neste momento, não há epílogo; há ganas para o debate e a disseminação da pesquisa.


Referências


Livros

GIASSI, Reginaldo Paulo. Olhares Eurocêntricos: a figura do cigano nas narrativas da série O povo cigano no Brasil e das obras Memórias de um Sargento de Milícias e Tocaia Grande: a face obscura. Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, 2014.

Cancioneiro dos ciganos.

GRASSI, Ernesto. Arte como Antiarte: a teoria do belo no mundo antigo. São Paulo, Duas Cidade, 1975.

MORAIS FILHO, Melo. Cancioneiro dos Ciganos. Cadernos do Mundo Inteiro, Jundiaí,  2018.

PINA, Álvaro. O belo como categoria estética. Livros Horizonte, Lisboa, 1982. 


Páginas de internet

Com didatismo, "Coded Bias" é um "O Dilema das Redes" sobre falhas das IAs.Uol,2021. Disponível em:

https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2021/04/10/coded-bias-da-netflix-prova-como-a-tecnologia-e-racista-e-viola-direitos.htm. Acesso em: 05.set.2024.

DARTMOUTH. https://home.dartmouth.edu/, 2024. Inteligência artificial cunhada em Dartmouth. Disponível em https://250.dartmouth.edu/highlights/artificial-intelligence-ai-coined-dartmouth. Acesso em: 05.jan.2024.

Entenda o impacto da Inteligência Artificial na vida da população negra. Mundo Negro, 2024. Disponível em: https://mundonegro.inf.br/entenda-o-impacto-da-inteligencia-artificial-na-vida-da-populacao-negra/. Acesso em 05.jan.2024.

YOCHABELL, Camilla. A inteligência artificial ajuda, mas quando ela é preconceituosa? Brasil, 18 jul.2022. Linkedin: Cammila Y. Disponível em: https://pt.linkedin.com/pulse/intelig%C3%AAncia-artificial-ajuda-mas-quando-ela-%C3%A9-cammila-yochabell


terça-feira, 10 de outubro de 2023

Sociedade evoluída e leitura

 Sociedade evoluída e leitura


Eu, geralmente, só publico textos de minha autoria aqui no blog; hoje, vou abrir mais uma exceção para essa carta de Luiz Schwarcz, da editora Companhia das Letras, pela importância que tem o universo dos livros e da leitura. O contexto pós-moderno, o qual vivenciamos, fomenta a individualização do sujeito, ou seja, só se olha para o próprio umbigo, o que fragiliza a organização de classe e o coletivo enquanto conjunto social. Princípios como egoísmo, exclusão, desrespeito, preconceito, são valores que ficam evidentes, atualmente, nas sociedades ditas evoluídas.

Ao ler "Quarto de despejo: diário de uma favelada" de Carolina Maria de Jesus, "A origem dos outros de Toni Morrison, meu livro "A família Canuto e a luta camponesa na Amazônia", meus textos teatrais, também publicados em livros e autores como: Stuart Hall, Michel Foucault, Umberto Eco, Jurgen Habermas, Frederic Jameson, Zygmunt Bauman, Gilles Lipovetsky, entre muitos teóricos, vejo que uma sociedade dita desenvolvida precisa resgatar valores e princípios determinantes para o equilíbrio e a justiça social; nesse sentido, ler é o passo mais indicado para que possamos denominar uma sociedade como sendo evoluída nesse século XXI.
 

CARTA ABERTA DE AMOR AOS LIVROS,

do criador da maior editora do Brasil, a Companhia das Letras
O livro no Brasil vive seus dias mais difíceis. Nas últimas semanas, as duas principais cadeias de lojas do país entraram em recuperação judicial, deixando um passivo enorme de pagamentos em suspenso. Mesmo com medidas sérias de gestão, elas podem ter dificuldades consideráveis de solução a médio prazo. O efeito cascata dessa crise é ainda incalculável, mas já assustador. O que acontece por aqui vai na maré contrária do mundo. Ninguém mais precisa salvar os livros de seu apocalipse, como se pensava em passado recente. O livro é a única mídia que resistiu globalmente a um processo de disrupção grave. Mas no Brasil de hoje a história é outra. Muitas cidades brasileiras ficarão sem livrarias e as editoras terão dificuldades de escoar seus livros e de fazer frente a um significativo prejuízo acumulado.
As editoras já vêm diminuindo o número de livros lançados, deixando autores de venda mais lenta fora de seus planos imediatos, demitindo funcionários em todas as áreas. Com a recuperação judicial da Cultura e da Saraiva, dezenas de lojas foram fechadas, centenas de livreiros foram despedidos, e as editoras ficaram sem 40% ou mais dos seus recebimentos— gerando um rombo que oferece riscos graves para o mercado editorial no Brasil.
Na Companhia das Letras sentimos tudo isto na pele, já que as maiores editoras são, naturalmente, as grandes credoras das livrarias, e, nesse sentido, foram muito prejudicadas financeiramente. Mas temos como superar a crise: os sócios dessas editoras têm capacidade financeira pessoal de investir em suas empresas, e muitos de nós não só queremos salvar nossos empreendimentos como somos também idealistas e, mais que tudo, guardamos profundo senso de proteção para com nossos autores e leitores.
Passei por um dos piores momentos da minha vida pessoal e profissional quando, pela primeira vez em 32 anos, tive que demitir seis funcionários que faziam parte da Companhia há tempos e contribuíam com sua energia para o que construímos no nosso dia a dia.
Luiz Schwarcz
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segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Conto seu Abílio

                                                                     Seu Abílio

Carlos Cartaxo

Há quem diga que não existe unanimidade. Mas seu  Abílio era o que se pode chamar de unanimidade. Não era por acaso que ele respondia como o representante jurídico da cidade, sem nunca ter cursado uma faculdade. Senhor de cabelos grisalhos, altura mediana, simpático e educado, mas de uma seriedade cuja palavra ninguém ousava duvidar. Sua eloquência, fruto de um bom nível cultural, o fazia o principal orador, na verdade o orador oficial da cidade de Picuí, no Seridó Oriental paraibano.

Foi professor de Português, de um colégio estadual, por muitos anos. O tempo passou e, mesmo depois de aposentado,continuou sendo a enciclopédia ambulante; o referencial mediador para as grandes celeumas intelectuais; o apoio para a realização de todas as gincanas e atividades culturais do Grupo Escolar Professor Lordão. Por muitos anos, foi a memória viva da cidade.



Como era um leitor ávido, as mães sempre o procurava para prescrever o nome dos recém-nascidos. Os nomes clássicos, oriundos da literatura universal, todos já sabiam que era sugestão de seu Abílio. E tem mais, a escolha não era aleatória. O nome da criança tinha uma relação com o histórico dos pais. Se o pai era bom de bola, o nome era Amarildo, Edson, etc. Quando era eletricista ou tinha uma profissão técnica, era Thomas, Santos Dumont, Leonardo. Se a mãe era enfermeira, era Ana Neri, Florence Nightingale. Isso fez com que uma geração inteira tivesse nomes que diferenciavam a cidade do seu entorno geográfico. A função de nomeador lhe deu notoriedade. Os jovens também se sentiam lisonjeados. É tanto que havia concorrência, mesmo implícita, para saber de quem era o nome mais bonito, mais significativo. Desde criança, todos sabiam a origem e o significado do seu nome.

Pela notoriedade, ele também tinha uma gama de afilhados. Afinal, ter seu Abílio como compadre era sinônimo de reconhecimento social. Inclusive, um estímulo ao filho para seguir o exemplo do padrinho. Dessa maneira, ele passou a ser um ícone, o cidadão mais reverenciado da cidade, mesmo sem nunca ter ocupado um cargo executivo ou legislativo.

Como pai, escolheu o nome mais justo e simbólico para seu filho: Jesus. Garoto alvo como um anjo. Educou-o, como se fosse um lorde inglês, para seguir uma educação rigorosa e tradicional. Como consequência, Jesus gostava muito de ler. Na escola não era destaque nota dez, mas sempre acompanhava os conteúdos com bastante afinco e tinha bom desempenho, para orgulho do pai.

Seu Abílio fazia questão de que Jesus participasse de todas as manifestações culturais da cidade. Era na quadrilha junina, na comemoração do Sete de Setembro ou no bloco de carnaval. Ele, com seus amiguinhos, participavam do movimento cultural, de passeios ciclísticos e viviam uma infância feliz.

Claro que uma das primeiras bicicletas a desfilar pelas ruas de Picuí foi a de Jesus. Era simplesmente linda! A cidade parava para vê-lo deslizar pelas vias calçadas ou de barro, rua a baixo, rua acima. Espelhados no presente de Jesus, a garotada vivia no pé do ouvido dos pais querendo uma bicicleta também. O que não deu outra, poucos meses depois, a turma das bicicletas desbravava a cidade de ponta a ponta.

Apesar de toda educação recebida e dos cuidados de seu Abílio, Jesus foi crescendo e se tornando muito independente, o que começou a ser motivo de preocupação. Chegou à adolescência; o momento de muita cautela no que concerne àeducação. Certo domingo, Jesus demorou muito para ir almoçar. A delonga causou um desconforto no pai, que o esperava na esquina da rua, suado e impaciente. O alívio veio quando a bicicleta apontou na outra esquina. Seu Abílio foi recebê-lo e, em um relance, sentiu cheiro de álcool. Fez-se de desentendido, mas depois do almoço levou Jesus para um quarto e fez uma sabatina. O filho prometeu que nunca mais iria beber cachaça.

De fato, por muito tempo Jesus se comportou como um garoto adolescente de excelente conduta. Álcool, jamais! Passou Natal e Ano Novo, e Jesus só tomava gasosa. Embora haja quem diga que à noite, escondido com os amigos, Jesus andava tomando vinho, algo muito leve, digamos suave, nada comprometedor. Dessa forma, Jesus estava ganhando pontos para que o prometido ao pai fosse cumprido, logo recompensado,ganhando as férias na capital do Rio Grande do Norte, desfrutando do tão sonhado banho de mar.

O acordo foi para Jesus só viajar depois dos festejos do carnaval. Nesse tipo de evento, que possibilitava uma perniciosa liberdade, segundo seu Abílio, o mesmo tinha que estar às vistas do pai. A viagem de férias já estava sendo programada, assim como a participação nos blocos carnavalescos dos jovens adolescentes da cidade.

O carnaval era bem organizado, havia corso com blocos de rua e blocos para o carnaval da sociedade no clube. Os papangus animavam as ruas. Havia certo investimento das famílias na participação dos filhos porque era, geralmente, quatro dias de folia, quando a cidade participava de forma efetiva, independentemente de classe social, fosse na rua ou no clube.

O sábado era o dia de feira na cidade. Mesmo assim, a folia começava cedo com os desocupados e os papangus tomando cachaça e brincando com farinha de trigo ou maisena e água. O desfile oficial de rua só iniciava às 16 horas. A cidade parava. A criançada e os jovens desfilavam em cima de jipes e camionetas com batucadas. Cada bloco esbanjava, como numa competição, a beleza da sua fantasia. Muito talco, farinha de trigo, água e alegria. Eram Reis, Rainhas, Zorros, índios, piratas... uma gama enorme de personagens a alegrar as ruas da cidade.

No domingo, a festa começava mais cedo. Às dez horas da manhã, já havia folia nas ruas. E Jesus, como bom folião adolescente, vestido com bermuda colorida, blusa listra e boné branco pegou sua bicicleta e desapareceu pelas ruas da cidade. Subia e descia ladeira sem demonstrar um pingo de cansaço.Acompanhava um bloco aqui outra acolá juntamente com um grupo de amigos ciclistas. Ao meio dia, o jovem, que tinha esquecido o tempo, ainda não havia aparecido para almoçar, o que deixou seu pai deveras preocupado. Em casa, seu Abílio, impaciente, caminhava de dentro para fora e, a cada cinco minutos, ia à janela. À uma hora da tarde, com o almoço ainda posto à mesa, ele não resistiu e foi à procura do filho. Foi àfarmácia do compadre Severino Fernandes e não obteve notícias de Jesus. Foi à sinuca e ninguém sabia do paradeiro do garoto. Ofegante, cruzou a rua e foi à delegacia. Lá encontrou o cabo Anselmo cochilando, sem coturnos, só de meias, com os pés em cima da mesa. Ao acordar e se deparar com seu Abílio, se recompôs, pediu desculpas e prontamente se dispôs a sair à procura do bom menino. Desesperado, saiu perguntando a um e a outro sobre o paradeiro de Jesus. A cidade inteira já estava sabendo do sumiço do adolescente. Por volta das duas horas da tarde, seu Abílio, no extremo da preocupação, suado e transtornado, encontrou Chico Cândido, membro espirituoso da filarmônica municipal, e foi logo fazendo a pergunta que todos já conheciam:

— Chico, você viu Jesus?

Sem pressa e sem se preocupar com o que dizia, Chico Cândido subiu a calça. Pensativo, continuou ajeitando os botões da camisa, como quem quer se apresentar decentemente para aquele respeitável homem. Reposicionou o suado chapéu na cabeça. Viu, pelo semblante, que aquele senhor estava deveras nervoso, no limite de sua paciência. Mirou seu Abílio no olho e, de forma didática, com a calma e a paciência que lhe era peculiarrespondeu:

— Seu Abílio, Jesus não aparece na Semana Santa, imagine 

no carnaval.


Conto publicado no livro Contatos, de 2014, p. 11 - 15.

Referência:

CARTAXO, Carlos. Contatos. João Pessoa, Editra do CCTA, 2014.

quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Prêmios literários e seus dissabores

                                                  Prêmios literários e seus dissabores

Carlos Cartaxo


Falar de prêmios literários é falar de política cultural. É redundante escrever sobre política cultural e suas implicações positivas no seio de uma sociedade; assim como é pleonástico enfatizar a importância de uma política cultural virtuosa para o movimento artístico e, em especial, para o/as artistas. Os conceitos existentes sobre política cultural variam de acordo com a abordagem e com o referencial teórico de quem fundamenta; contudo. cito aqui o artigo Mais definições em trânsito: política cultural, quando afirma que  “Políticas culturais são formulações e/ou propostas desenvolvidas pela administração pública, organizações não-governamentais e empresas privadas, com o objetivo de promover intervenções na sociedade através da cultura” (Félix e Fernandes, Cult, s/d) porque representa bem o que tratado aqui nesse artigo. 

Nas duas primeiras décadas do século XXI, o movimento cultural brasileiro teve um grande impulso com a gestão democrática do Ministério da Cultura nos dois primeiros governos Lula, PT, e no governo Dilma, PT. As leis de incentivo à cultura foram determinantes para a produção e a veiculação do que se produzia na área artística e cultural; ao mesmo tempo que impulsionou o trabalho de organizações não governamentais, empresas e produtores individuais .  

O ato de criar é parte essencial da condição humana. Há teorias em várias áreas do  conhecimento quanto ao papel do ser criador na sociedade. Um bom parâmetro para se majorar a produção criativa em uma sociedade é identificar o estímulo que gestores e o conjunto da sociedade dão ao processo criativo e ao criador porque daí surgem criaturas com conhecimento, sensibilidade, respeito ao próximo e visão plural do mundo e, principalmente, do seu entorno.


Foto: fonte internet

A lição de Portugal

Apesar de ser a terra de Camões, Fernando Pessoa e Saramago, dentre muitos criadores significativos da literatura, me reporto aqui não só aos criadores, mas, a política cultural gerida que faz de Portugal um país expressivo no mundo da arte e, particularmente, na literatura. Por exemplo: vejamos alguns editais de 2023 publicados por lá.

  1. O Prêmio Literário Joaquim Mestre, promovido pela ASSESTA - Associação de Escritores do Alentejo, que premia o vencedor com 3.000,00 (três mil euros); algo em torno de R$ 16.000,00 (dezesseis mil reais).

  2. Prêmio Literário Alves Redol, 9° edição,promovido pela Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, nas modalidades literárias de conto e romance. O prêmio para contos é de 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), algo em torno de, R$ 14.000,00 (quatorze mil reais).

  3. Prêmio Literário Luís Miguel Rocha, 3° edição, da Câmara Municipal de Viana do Castelo. O prêmio será de 6.000,00 (seis mil euros), aproximadamente R$ 33.000,00 (trinta e três mil reais).

  4. Prêmio Res Pública, da Fundação Res Publica, 5° edição,cujo  tema este ano é “Políticas Públicas num futuro e num contexto de Alterações Climáticas”, tem o valor de um valor de € 2.500 (dois mil e quinhentos euros), aproximadamente  R$ 14.000,00 (quatorze mil reais)e € 1.500 (um mil e quinhentos euros), em torno de  R$ 8.000,00 (oito mil reais), a atribuir ao autor ou autores dos ensaios vencedores do primeiro e segundo prêmios, respetivamente, e um valor de € 1.000, em torno de R$ 5.500,00 (cinco mil e quinhentos reais), a atribuir ao autor vencedor do Prêmio Jovem (para autores nascidos depois de 2002).

  5. Prêmio Literário Santos Stockler do Município de Lagoa. O prêmio será de 10.000,00 (dez mil euros), em torno de R$ 55.000,00 (cinquenta e cinco mil reais).


Esses prêmios citados são apenas uma pequena fração dos prêmios que são publicados em Portugal com o fim de valorizar a língua portuguesa, promover e enaltecer a identidade daquele povo, assim como a diversidade sócio cultural dos leitores e dos artistas; ao mesmo tempo, estimular a criação literária, a propensão pela escrita e, naturalmente, pela leitura, desencadeando um potencial universo de apreciadores culturais.

Voltando para casa; sentado à poeira da aridez, mesmo no verdejante inverno do sertão e se deliciando com a brisa do mar, vejo na Paraíba um panorama frágil e ineficiente quanto a política cultural no que concerne ao estímulo aos criadores e ao fomento aos leitores e apreciadores. Um estado que tem uma lista enorme de significativos artistas e uma produção cultural de projeção internacional, tem uma política cultural pífia. Para não dizerem que falo demais, vejam, por exemplo, o edital 008/2023, Prêmio Literário José Lins do Rego, do Governo do Estado da Paraíba, através da FUNESC - Fundação Espaço Cultural, e façam um paralelo com os editais de pequenas cidades de Portugal; vemos que no caso da Paraíba é um atentado ao criador da literatura paraibana. Os valores dos prêmios em Portugal humilham a premiação inexistente do concurso paraibano. Aqui o Edital reza que: 

4 DA PREMIAÇÃO

4.1 No total, serão selecionadas para publicação em livro com os selos Edições Funesc e 

Editora A União, 5 (cinco) obras, uma em cada categoria, conforme especificado a seguir:

4.1.1 Coleção Riacho Doce: Romance (1);

4.1.2 Coleção Gordos e Magros: Conto(1) e Crônica (1);

4.1.3 Coleção Pureza: Poesia (1);

4.1.4 Coleção Velha Totônia: Infantojuvenil (1);

4.2 As 5 (cinco) obras classificadas no PRÊMIO LITERÁRIO JOSÉ LINS DO REGO serão, após seleção pela FUNESC, editoradas e impressas na Gráfica A União.

4.3 Serão impressos 400 (quatrocentos) livros de cada categoria, no total de 2.000 (dois mil)

exemplares. Os candidatos (as) premiados (as) terão direito, cada um, a uma cota de 50 

(cinquenta) exemplares de suas respectivas obras, a título de direitos autorais em forma 

de produto, ficando a FUNESC e a Editora A União isentas de posterior pagamento por 

direitos desta natureza.

4.4 O saldo remanescente de 1.750 (mil setecentos e cinquenta) exemplares dos cinco

títulos premiados serão de responsabilidade distributiva da FUNESC, através da

Biblioteca Pública Juarez da Gama Batista e da EPC, que dividirão o saldo de livros entre 

si, na proporção de 150 (cento e cinquenta) exemplares de cada categoria para FUNESC

e 200 (duzentos) exemplares de cada categoria para EPC, a esta para fins de 

comercialização.

A obra do autor premiado será publicada com 400 livros, ficando para o autor, como pagamento dos direitos autorais, 50 volumes, pouco mais de dez por cento; vejam que proporção é desleal para aquele que é o criador da obra. E tem mais, os direitos autorais ficam para os editores por cinco anos. E a premiação em dinheiro? Inexiste! Sério? Parece não ser sério; mas, é apenas absurdo! Sendo assim, entendo esse edital, da mesma forma a política cultural do estado da Paraíba, como sendo a usurpação da criatividade e  do trabalho do autor.

Será que o trabalho de cinco anos de um autor merece o valor de uma, duas ou três diárias de um secretário de estado? Não, não vale é muito pouco! Dez dias de diárias do trabalho de um, jamais valerá cinco anos do trabalho do outro? É claro que essa analogia não cai bem. O trabalho de um secretário pode ser realizado por qualquer outro secretário; e o trabalho do escritor? Será que se meu computador quebrar e eu perder o capítulo de um livro, posso passar essa responsabilidade para outra pessoa reescrevê-lo? Alguém pode até tentar, mas jamais o fará mesmo! Então, a questão não é de comparação de ganhos, mas, de desvalorização, negação e não reconhecimento do trabalho do outro; é negar a grandeza que compõe o processo de criação; da elaboração de cenas e a complexidade de construção de um enredo, de uma ou várias personagens.

Foto: fonte internet
 

Contudo, não cabe aqui a teoria da queixa; mas, da crítica caee, sim. Cabe criticar a política cultural do Governo do Estado da Paraíba, da política cultural dos municípios e dos artistas que silenciam como se essa debilidade de gestão pública fosse normal e aceitável. É fato que o advento da pós-modernidade isolou os sujeitos; que nos olhamos mais no espelho do que no entorno social; que pensar no pŕoximo, por conseguinte, no coletivo é utopia; e que utopia era concepção da luta para derrubar a ditadura. Diante desse quadro faço um exercício hercúleo para não acreditar no que acabei de escrever; por isso, conclamo os criadores, leitores e apaixonados pela arte e cultura, para se posicionarem e exigirem uma política cultural do Governo do Estado da Paraíba e dos municípios que seja condizente com o que a sociedade paraibana necessita e merece, no que diz respeito a arte, a cultura, ao entretenimento e a socialização do saber.


Referências

https://www.cult.ufba.br/maisdefinicoes/POLITICACULTURAL.pdf Consultado em 31/08/2023 às 11h10.

https://culturaemercado.com.br/os-oito-anos-do-governo-lula-e-os-pontos-de-cultura/ Consultado em 31/08/2023 às 14h30.

http://livro.dglab.gov.pt/sites/DGLB/Portugues/premios/PremiosaDecorrer/Paginas/PremiosaConcurso.aspx Consultado em 31/08/2023 às 18h30.